Quando é que a criança começa a formar memórias?

Importa antes de mais clarificar que temos vários tipos de memória e podemos sistematizá-las por exemplo de acordo com a forma como as codificamos e relembramos: memória consciente (explícita) ou inconsciente (implícita).
Ou seja, se eu aprendo e recordo com esforço, com estratégia, pensando ativamente sobre isso, recorro à memória explícita ou declarativa que, por sua vez, se divide em memória semântica ou episódica, ou seja, a capacidade de aprender novo vocabulário ou memorizar sequências de eventos.
 
Se uma memória surge subitamente na consciência sem que eu tenha pensado nisso recorro à memória implícita, é o caso das mnemónicas, da memorização de números de telefone ou nomes de pessoas, i.e. “eu sei porque sei”. É também o caso da memória procedimental, não penso na sequência de movimentos necessários para andar de bicicleta, simplesmente ando.
 
Podemos ainda organizar as memórias de acordo com as suas características sensoriais, lembramos imagens, textos, texturas, cheiros ou sabores. O que significa que ao entrar na casa de uma pessoa posso subitamente ser "transportado" para a casa da minha infância, e lembrar-me especificamente de um acontecimento, o que pensei, como me senti, quem estava ao meu lado, ou que altura do dia era. E isto acontece sem que haja esforço para lembrar, é uma forma de memória implícita.

 
O que é a amnésia infantil?
A maioria de nós consegue lembrar eventos que remetem para o terceiro ou quarto ano de vida mas raramente antes disso. Aos 6 anos uma criança pode conseguir lembrar o seu primeiro aniversário, no entanto ao longo da vida essas memórias desvanecem-se
 
Sabe-se agora que as memórias que formamos depois dos 3 anos permanecem porque, por volta desta idade, surge a maturação de estruturas cerebrais fulcrais para a memória. O desenvolvimento de estruturas temporais mesiais como o hipocampo e as regiões fronto-parietais permitem ao cérebro associar, armazenar e recordar eventos, ou seja, são estruturas ligadas à memória episódica.
 
Paralelamente existe uma outra competência cognitiva complexa que se desenvolve nesta altura: a linguagem. A linguagem organiza o pensamento, permite colocar um evento por palavras, objetivá-lo e, naturalmente, lembrá-lo. 
 
Será que isto significa que os primeiros anos simplesmente desvanecem? 
Claramente que não. Os primeiros anos de vida correspondem aos alicerces da mente humana. O que observamos depois dos 3 anos é sobretudo o resultado da memória mas não a memória em si, ou seja, sabemos caminhar ou falar, mas não nos lembramos como aconteceu esse processo.
 
Quando surgem então as primeiras memórias?
O bebé com um dia de vida já distingue o cheiro do leite da mãe do de outras mães, no útero já reconhece a voz materna ou de outros significativos com quem a mãe conviva com frequência e, quando nasce, tem a capacidade de acalmar perante estes timbres que reconhece.
 
Luria (o “pai da Neuropsicologia”) descreve no seu livro “O estranho caso do homem que memorizava tudo” que o seu paciente se lembrava de ser amamentado pela mãe que na altura descreve como “coisa boa que se aproximava”. Este caso remete para a qualidade emocional da memória, ou seja, o bebé tem a capacidade de lembrar o que os eventos o fizeram sentir. 
 
E é a memória emocional que se assume como o fator diferenciador na aprendizagem nas várias fases do desenvolvimento humano. As memórias com qualidades emocionais neutras tendem a ser esquecidas, sendo que podem mesmo não chegar a ser codificadas no cérebro. As memórias que permanecem são as que têm intensidade positiva ou negativa. Por exemplo, um adolescente ou adulto pode não se lembrar bem dos tios mas lembrar que se sentia bem na casa deles, ou que gostava do cheiro da avó. 
 
Um bebé tem por isso já vários sistemas de memória a funcionar que servirão de base à aprendizagem futura.
 
Esta reflexão permite clarificar a complexidade dos sistemas de memória e aprendizagem ao longo da vida. Ou seja, quando surge alguma dificuldade no processo de aprendizagem na criança ou de memorização no adulto, a Avaliação Neuropsicológica procura identificar qual destes sistemas pode estar comprometido e, integrando-o nos restantes sistemas cognitivos permite fazer um diagnóstico e intervir.
A plasticidade cerebral permite ao cérebro um desenvolvimento constante que pode ser amparado ou impulsionado pela intervenção adequada.
 
Na dúvida é importante procurar um/a Especialista!
 
Susana Oliveira-Lopes
Neuropsicologia Clínica | IPNP Saúde

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